Você já ouviu falar na Lei Afonso Arinos? Foi a primeira Lei dedicada à discriminação racial no país, a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos, em homenagem ao deputado federal Afonso Arinos de Melo Franco, que foi o autor do projeto de lei. Hoje ela completa 69 anos desde a sua promulgação.
Foi celebrada por ser pioneira no assunto, tipificando condutas discriminatórias por razão de raça ou cor como contravenção penal, ou seja, seriam punidas pelo o direito penal brasileiro. Apresentaremos a primeira Lei brasileira sobre a questão da discriminação racial. Pasmem, no Brasil está codificada a discriminação racial desde 1950!
A Lei representou um passo importante na afirmação do ideal de igualdade racial no âmbito jurídico-penal, presente de maneira bem simples na Constituição Federal de 1946 no art. 141, § 5º que dizia resumidamente não ser tolerada a propaganda de preconceitos de raça ou de classe.
O ponto que merece destaque é que a referida Lei representou o reconhecimento oficial, por parte do Estado, da existência do racismo, da discriminação na sociedade brasileira.
Primeiramente, faz-se importante considerar a fase histórica do Brasil na década de 50. Um período de pós Segunda Guerra Mundial, saindo de um período autoritário, rumo ao regime democrático, era a época de se apresentar ao mundo.
O Brasil assim otimista, pronto para ser o exemplo para o mundo na questão racial, uma vez que não havia uma situação parecida com a dos Estados Unidos por exemplo, que tiveram uma guerra civil, organizações supremacistas brancas, leis de segregação explícitas (de um ponto de vista legal) ou com a do apartheid na África do Sul.
No início da década de 1950, a UNESCO patrocinou um conjunto de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. A origem deste projeto estava associada a agenda antirracista formulada no final dos anos 1940. Procuravam um modelo de convivência inter-racial harmônica, como parte de uma estratégia maior de combate ao racismo que ainda persistia em vários lugares do mundo, não obstante o choque causado pelos milhões de mortes decorrentes de ódios raciais principalmente durante a Segunda Guerra Mundial. O Brasil – considerado uma espécie de “laboratório” – desfrutava de uma imagem positiva em termos de relações inter-raciais, se comparado com os Estados Unidos e com a África do Sul.
O Brasil queria passar a imagem de harmonia racial, um país que vive em mil maravilhas com a diversidade étnica, criando assim o mito bem elaborado pela elite intelectual brasileira, a democracia racial. Nas palavras de Abdias Nascimento em sua grandiosa obra “O genocídio do negro brasileiro”- que inclusive deveria ser um autor obrigatório no ensino brasileiro:
“Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país”..
Por outro lado, mesmo sem lei segregacionista, a sociedade brasileira praticava esse apartheid, segregando de uma maneira estrutural. George Reid Andrews resume o modo de operação do preconceito racial no Brasil dizendo que “o modelo brasileiro das relações raciais trabalha muito eficientemente para reduzir a tensão e a competição raciais ao mesmo tempo em que mantém os negros em uma posição social e econômica subordinada” (ANDREWS, 1998, p. 271).
O evento que precipitou a elaboração do projeto da primeira lei contra a discriminação racial no Brasil foi a recusa, por um hotel de São Paulo, em hospedar Katherine Dunham, uma bailarina negra norte-americana de renome internacional, por motivo de cor. O fato se deu em julho de 1950, e a repercussão negativa foi imediata. Poucos dias depois o então deputado federal pela União Democrática Nacional (UDN), Afonso Arinos, apresentou o projeto de lei na Câmara dos Deputados, aprovado ainda naquele mês de julho de 1950 e sancionado como lei em julho de 1951 pelo recém-eleito presidente Getúlio Vargas.
A Lei surgiu para dar uma resposta ao mundo de que O Brasil não era racistaes, se sempre foi um dos terrores da sociedade branca brasileira: se considerar racista. Isso refletiu a contradição de uma sociedade que acreditava ser um exemplo em termos de convivência racial harmônica e, ao mesmo tempo, começava a reconhecer a existência, em seu território, de práticas discriminatórias contra negros.
A Lei era totalmente ambígua pois por um lado ela reconhece que a prática do racismo, da discriminação ser nociva e, por outro lado, pela força da democracia racial, considera que o brasileiro não é racista, o racismo não está presente igual nos EUA, aqui somos todos iguais, não passam de termos “jocosos”. Assim, a lei não punia com severidade e sim como uma contravenção penal, o que causa uma contradição no próprio texto legal.
Abdias conta ainda o que a Lei não foi uma benesse dos legisladores brancos e sim uma luta do movimento negro.
Por tratar-se de motivações subjetivas, tornava-se difícil prová-las, principalmente pelo fato de ser um tipo de infração na qual o acusado tinha posição social superior à da vítima. Numa sociedade acostumada a negar, minimizar, a existência desse mesmo preconceito, tornava-se, como foi dito, difícil apresentar a queixa, afinal como provar a motivação de alguém nesse contexto?
Nesse sentido, as provas de racismo só poderiam aparecer na imprensa, mediante algum incidente particularmente escandaloso. Contudo, o racismo virulento, associado ao ideal de branqueamento, tinha paradoxalmente livre curso na imprensa brasileira.
No que se refere a essa situação, a lei Afonso Arinos era complacente e cheia de brechas, aproveitadas pelos acusados de discriminação. Em razão disso, sua utilidade restringiu-se ao terreno do simbólico.
Assim, a legislação brasileira contra a discriminação racial limitou-se a cumprir um papel meramente formal.
É importante analisar o direito em sua conexão com a realidade social e com o direcionamento político-ideológico do corpo legislativo da época. Deve-se pensar ainda sobre a força simbólica do direito e sua apropriação pelo aparelho legislativo e pelos que interpretam e aplicam o direito, principalmente no que concerne a questões de ordem racial, o que podemos fazer uma analogia para os dias de hoje, Conforme o brilhante Dr. Adilson Moreira defende, o Judiciário e o Ministério Público são de um mesmo grupo social, racial e econômico, são pessoas socializadas com a negação do racismo, pautados com o mito da democracia racial dificultando assim uma resposta dura para os crimes de racismo, preconceito, discriminação. Basta uma simples procura sobre decisões do nosso judiciário para que isso seja verificado.
Nas palavras de Amaury Silva, autor do livro Crimes de Racismo, a Lei Afonso Arinos representou um rompimento com o vácuo legislativo sobre a questão racial, introduzindo no ordenamento jurídico brasileiro um diploma legal com tal proposição. Mesmo com sua deficiência técnica foi um símbolo de avanços necessários, lentos e ascendentes.
Durante a vigência da Lei 1.390/51, pouquíssimos foram os casos conhecidos em que um ato de discriminação racial resultou em processo criminal e condenação com fundamento na lei. Portanto, embora seja considerada um símbolo na luta contra a discriminação racial no Brasil, a Lei 1.390/51 também se tornou conhecida pela sua inefetividade em termos jurídico-penais.
Abdias Nascimento diz que “ trata-se de uma lei que não é cumprida nem executada. Ela tem um valor puramente simbólico”.
69 anos depois o que podemos dizer da primeira lei sobre discriminação racial no país? Houveram avanços jurídicos? Fica o questionamento…
Segue a Lei:
LEI Nº 1.390, DE 3 DE JULHO DE 1951
Inclui entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor.
Parágrafo único. Será considerado agente da contravenção o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento.
Art. 2º Recusar alguém hospedagem em hotel, pensão, estalagem ou estabelecimento da mesma finalidade, por preconceito de raça ou de cor.
Pena: prisão simples de três meses a um ano e multa de Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros) a Cr$ 20.000,00 (vinte mil cruzeiros).
Art. 3º Recusar a venda de mercadorias em lojas de qualquer gênero, ou atender clientes em restaurantes, bares, confeitarias e locais semelhantes, abertos ao público, onde se sirvam alimentos, bebidas, refrigerantes e guloseimas, por preconceito de raça ou de cor.
Pena: prisão simples de quinze dias a três meses ou multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros).
Art. 4º Recusar entrada em estabelecimento público, de diversões ou esporte, bem como em salões de barbearias ou cabeleireiros por preconceito de raça ou de cor.
Pena: prisão simples de quinze dias três meses ou multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros).
Art. 5º Recusar inscrição de aluno em estabelecimentos de ensino de qualquer curso ou grau, por preconceito de raça ou de cor.
Pena: prisão simples de três meses a um ano ou multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros).
Parágrafo único. Se se tratar de estabelecimento oficial de ensino, a pena será a perda do cargo para o agente, desde que apurada em inquérito regular.
Art. 6º Obstar o acesso de alguém a qualquer cargo do funcionalismo público ou ao serviço em qualquer ramo das forças armadas, por preconceito de raça ou de cor.
Pena: perda do cargo, depois de apurada a responsabilidade em inquérito regular, para o funcionário dirigente de repartição de que dependa a inscrição no concurso de habilitação dos candidatos.
Art. 7º Negar emprego ou trabalho a alguém em autarquia, sociedade de economia mista, empresa concessionária de serviço público ou empresa privada, por preconceito de raça ou de cor.
Pena: prisão simples de três meses a um ano e multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros), no caso de empresa privada; perda do cargo para o responsável pela recusa, no caso de autarquia, sociedade de economia mista e empresa concessionária de serviço público.
Art. 8º Nos casos de reincidência, havidos em estabelecimentos particulares, poderá o juiz determinar a pena adicional de suspensão do funcionamento por prazo não superior a três meses.
Art. 9º Esta Lei entrará em vigor quinze dias após a sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Rio de Janeiro, 3 de julho de 1951; 130º da Independência e 63º da República.
GETÚLIO VARGAS
Francisco Negrão de Lima
Bibliografia:
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
CAMPOS, Walter de Oliveira. A Lei Afonso Arinos e sua repercussão nos jornais (1950-1952): entre a democracia racial e o racismo velado / Walter de Oliveira Campos. Assis, 2016.
BARRETO JUNIOR. Jurandir Antonio Sá. “Para Inglês ver. Resumo histórico das leis de combate à discriminação no ordenamento jurídico no regime republicano no Brasil”.
Revista Liberdades. Ed. 28 julho/dezembro 2019. Teoria crítica racial. Justiça Racial. IBCCRIM.