DANO EXISTENCIAL
I. A figura do dano existencial
Abordaremos um tema relativamente novo e controverso, uma vez que não existe no Brasil uma posição majoritária sobre o assunto, vamos então analisar o dano existencial.
É necessária a inclusão? É um novo tipo de dano? Ou o dano moral puro já é suficiente para resolver os problemas de abalo psicofísico resultantes?
Dano existencial é um desrespeito à dignidade da pessoa humana?
O dano à pessoa tornou-se um bem jurídico constitucionalizado com a chamada “Constituição cidadã” de 1988, que logo em seus primeiros artigos já traz as proteções aos direitos e deveres dos cidadãos, bem como a consequência para o desrespeito a dignidade humana que será pela indenização. A dignidade e dano moral andam ligados entre si.
O Código Civil de 2002 prevê cláusula geral admitindo ressarcimento do dano ainda que só moral, notadamente em seu artigo 186.
Dignidade da Pessoa Humana – é um princípio jurídico, previsto no art. 1º, III, da CF 1988, portanto um dos Princípios Fundamentais sendo de aplicação obrigatória por ser uma norma jurídica.
O conceito jurídico de dignidade é fundamentado na filosofia moral, Kant em Metafísica criou a expressão “personalíssimo ético” dizendo que os seres humanos são fins neles mesmos, a pessoa é um fim em si, a vida humana assim é intangível, intocável, sem preço.
Para Fabio Comparato a dignidade do ser é fundamento de direito em geral, portanto a dignidade é um atributo essencial da pessoa, sem necessidade de qualificação, raça, cor e etc.
Flaviana Rampazzo Soares (2009, p.35) assevera que os direitos de personalidade estão assentados na dignidade humana, vale dizer, é consequência do reconhecimento do princípio da dignidade – reconhecimento próprio e pelos demais, e a ela estão subordinados. Por isso, não possuem expressão econômica imediata, são direitos subjetivos não patrimoniais, em que pese o fato de que tais atributos são importantes para a pessoa alcançar bens materiais.
Os direitos fundamentais e consequentes direitos de personalidade tem íntima ligação à existência da pessoa. Da tutela dos mesmos resulta a valorização de todas as atividades que a pessoa realiza ou possam vir a realizar, tais atividades podem levar o indivíduo a atingir a felicidade, exercendo suas faculdades físicas ou psíquicas, e a felicidade é, em última análise, a razão de ser da existência humana. (GONÇALVES, 2012 , p.53).
O personalíssimo ético de Kant, o qual foi observado pela CF de 88 brasileira, já estava previsto na Declaração Universal dos Direitos Homem de 1948 (ONU), conforme disposto no art.1º:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”
Teoria do alemão Hans Carl Nipperdey, chamada de Teoria do Drittwirkung, a qual previa a proteção dos direitos fundamentais em face de particulares também, ou seja, não sendo uma exclusividade do particular em face do Estado, visava proteger assim o livre pensamento, a proibição de discriminação e etc.
No Direito Ocidental não se faz mais distinção entre direitos fundamentais da pessoa e direito da personalidade, conforme os dispostos na CF, CC, todas as leis que tutelam o tema.
Nos EUA, excepcionalmente, o cidadão pode acionar outro particular com base em direitos constitucionais fundamentais que é o state action doctrine.
II. Dano Existencial – Histórico
Surge na Itália pela Escola de Trieste. Denomina-se um sentimento de frustração como dano existencial, tendo suas origens na Itália, o dano existencial inicialmente chamado de dano biológico surgiu da necessidade de resguardar aquele que sofresse um dano de origem imaterial, que não fosse condicionado à existência de um ilícito penal, bem como não se enquadram na definição de dano moral. (SOARES, 2009, p.p. 42-43)
O dano biológico ou à saúde decorre da violação ao direito fundamental à saúde (art.32 da Constituição italiana). Foi uma criação doutrinária e jurisprudencial da década de 70 tão importante que acabou sendo positivada pelo legislador italiano com a elaboração do Código de Seguros Privados de 2005.
O dano existencial é o prejuízo que o ato ilícito causa sobre atividades não patrimoniais do indivíduo, alterando seus hábitos de vida e sua maneira de viver socialmente. Ele atinge o projeto de vida.
Na França “préjudice d’agrément”; nos EUA e Reino Unido “loss of amenities of life”
Argentina também dispõem em seu Proyecto de Código Civil y Comercial 2002, art. 1738, onde trata de indenizações, diz das consequências em violações aos direitos personalíssimos da vítima, saúde psicofísica e etc, seriam todas aquelas que resultam da interferência em seu projeto de vida.
Dano existencial é categoria de dano extrapatrimonial? Ora sim, ora não,
Para caracterizar o dano existencial é necessário que tenha sido produzido um prejuízo ao bem-estar pessoal ou no projeto de vida do ofendido.
Flaviana Rampazzo Soares diz que dano existencial se caracteriza quando há uma alteração substancial da qualidade de vida, em ter de agir de outra forma ou não poder fazer como antes, ou seja, muda a essência da pessoa por conta de um ato lesivo sofrido, tornando a existência da pessoa muito pior, como exemplo não praticar mais os hobbies, renúncia forçada a ocasiões felizes, é um dano com potencialidade, pois se projeta no futuro.
O desenvolvimento normal de uma pessoa é formado por relações de ordem pessoal e social, pelas experiências vividas, absorvidas, resultando em uma realidade para a pessoa, como um pressuposto da PNL – Programação Neorolinguística – o dano existencial é justamente o que vai mudar essa realidade, de forma total ou parcial, vai ser incorporado algum comportamento para que não haja mais um abalo, um sofrimento, assim o ordenamento jurídico passa a priorizar a existência do ser humano.
De acordo com o Direito Italiano o dano moral é o sentir, ele é interno e subjetivo, o dano existencial é externo e objetivamente constatado, pois interfere diretamente nas ações externas, no deixar ou não de fazer alguma coisa, um estilo de vida. Sendo assim um dano consequência ou dano prejuízo, só ocorre se um fato danoso anteceder.
O Dano Existencial, cujo berço é italiano, foi discutido e analisado no Brasil, de início, pelo advogado civilista Amaro Alves de Almeida Neto, que tratou de diferenciar do dano moral, dizendo que:
“Dano moral é essencialmente sentir. No existencial não se sente, mas se deixa de fazer alguma coisa” Ele diz que este instituto “é a tutela da dignidade humana”, já que ninguém tem o direito de mudar a vida das pessoas ou tirar-lhes o direito de fazer algo que seja lícito. “A pessoa é dona da sua vida e da sua agenda”.
O estudo do dano existencial foi investigado ao lado do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos de Personalidade pela professora Dra. Teresa Ancona Lopez, em sua disciplina “Tendências da Responsabilidade Civil no Direito Contemporâneo”, oferecida aos doutorandos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 2.010.
Para José Mário Delaiti de Melo:
O instituto da reparação por danos morais tem sido eficaz e justo quanto ao seu objetivo de assegurar a dignidade da pessoa humana? O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do estado democrático de direito e por isso um dos alicerces da nossa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Desta forma, é de grande relevância que se debata o tema com o intuito de buscar sua valorização. O supracitado princípio está intimamente ligado aos direitos fundamentais preconizados na Carta Magna da Brasil de 1.988, e se destaca pelo fato de conferir unidade de sentido e legitimidade para o nosso ordenamento jurídico. O princípio da dignidade da pessoa humana serve como ponto de partida para que as normas sejam criadas em consonância com os direitos do homem, interferindo no campo social quando tutela o direito a uma vida digna, no campo econômico e político quando se entende, por exemplo, que para ter uma vida digna o ser humano necessita de um emprego que lhe traga a possibilidade de viver bem e no campo jurídico quando interfere diretamente na criação das normas.
A dignidade da pessoa humana sendo a base de todo o ordenamento jurídico, é demonstrada por meio dos direitos e garantias fundamentais que incluem os direitos da personalidade. Sendo assim, qualquer ofensa a um direito da personalidade, como a honra e a intimidade, entre outros, é uma ofensa direta à dignidade da pessoa humana. Desta feita, sempre que a dignidade da pessoa humana estiver sendo lesada ou em vias de o sê-lo, o Estado deve protegê-la. Falhando o Estado nessa proteção e permitindo que com isso a lesão ocorra, não pode o indivíduo ser abandonado, fazendo com que a pessoa humana seja subvalorizada; logo, existe uma opção ao indivíduo: pleitear perante a justiça a compensação desse dano moral. Nesse sentido têm decidido nossos tribunais.
O dano existencial pode, conforme a extensão da lesão, ser reparável ou irreparável. Neste último caso, ele crucifica valores irremontáveis do ser humano, como a dignidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, a pluralidade e os Direitos da Personalidade. Compromete – se, dessarte, o próprio Direito à Felicidade.
Matteo Maccarone diz:
“O dano moral é essencialmente um ‘sentir’; o dano existencial é mais um ‘fazer’ (isto é um ‘não mais poder fazer’, um ‘dever agir de outro modo’). O primeiro refere – se quanto à sua natureza ao ‘dentro’ da pessoa, à esfera emotiva; o outro relaciona – se ao ‘exterior’, o tempo e espaço da vítima. No primeiro toma – se em consideração o pranto versado, as angústias; no outro as atenções se voltam para a reviravolta forçada da agenda do indivíduo”.
Para Almeida Neto, “o dano existencial, em suma, causa uma frustração no projeto de vida do ser humano, colocando-o em uma situação de manifesta inferioridade – no aspecto de felicidade e bem-estar – comparada àquela antes de sofrer o dano, sem necessariamente importar em um prejuízo econômico. Mais do que isso, ofende diretamente a dignidade da pessoa, dela retirando, anulando, uma aspiração legítima”.
Será possível aplicar a teoria em casos de preconceito racial, racismo, discriminação?
Na humilde opinião deste que ora subscreve: sim, uma vez que tais ataques sofridos marcam a vida de uma maneira profunda, fazendo com que o ofendido deixe de fazer certas coisas, ou seja, frequentar lugares ou, até mesmo, muda o seu projeto de vida.
O valor da indenização por danos sofridos (…) será uma tarefa sempre muito dificultosa, ante a ausência de critérios claros e objetivos para mensurar a dor sofrida por outrem. Consoante a jurisprudência, é necessário considerar, para fixar o quantum, que a indenização não visa reparar, no sentido literal, a dor, mas estipular um valor compensatório para amenizá-la representando para a vítima a satisfação, igualmente moral, psicológica, capaz de neutralizar o sofrimento impingido, pois a única maneira que tem efeito é o econômico, para pelo menos uma simples reflexão de que tal ato não será tolerado pela justiça, ou seja, o Estado precisa agir, punir e ser completamente rigoroso.
Podemos apontar a reflexão, em sede doutrinária, de Carlos Ayres Britto:
“Discriminar ou preconceitualizar é conferir a uma dada pessoa um tratamento humilhantemente desigual. Nela introjetando um sentimento de inata hipossuficiência. Esse modo tão acabrunhante quanto desarrazoado de tratar um ser humano é de tamanha gravidade, que o discriminado é como que forçado a se sentir padecente de um déficit de dignidade. Ou de cidadania. Como se pertencesse a um subgrupo ou a uma sub-raça. Amesquinhado não no que ele tem, mas no que ele é. Experimentando, por conseguinte, um inexplicável sentimento de culpa – espécie terrível de pecado original social – e fazendo-o gemer de uma revoltante dor moral. Por vezes mais incômoda que a própria dor física”.
III. As provas e jurisprudência no direito estrangeiro
A prova se faz comparando o antes e depois do evento danoso, sendo observado o comportamento das realizações da vida, as consequências negativas que, agora, aparecem. Esse dano é uma lesão aos direitos fundamentais e pode ser resumido a uma lesão à dignidade da pessoa.
A demonstração é feita por fatos notórios, provando a agenda existencial, atividades normais que eram desenvolvidas pela vítima, seus hobbies, esportes, músicas e etc.
No Reino Unido, aparece a figura do dano existencial sendo que antes do fato a pessoa apreciava coisas e situações que após o evento lhe faltam.
Na França seria a privação das alegrias da existência e a perda dessa essência o dano. Como exemplo de danos existenciais podemos citar o mobbing, bullying, e assédio sexual.
No Brasil o dano existencial é recorrente no direito do trabalho, com uma simples pesquisa podemos observar diversas decisões sobre o tema e a sua real aplicação.
Dano existencial e dano moral contratual – em resumo, só caracteriza o dano por conta da relação contratual existente, surgindo uma consequência além da relação contratual e por razão unicamente deste, como exemplo: pacote de viagem, cancelamento de eventos e etc.
IV. Conclusão
Dano existencial é o próprio nome, proteger a existência do ser, uma vez que é um dano de potencialidade alta, pois projeta para o futuro e molda a vida da vítima, fazendo com que a pessoa não viva mais com pureza, alegria, leveza, pois teve a sua existência julgada.
Sendo assim, o respeito à dignidade da pessoa humana é indispensável a uma existência digna do ser humano, o que, como visto, são semelhantes.
Como fica no Brasil?
Para a autora do artigo, em determinadas e graves ofensas à pessoa, o dano existencial configura uma melhor proteção à dignidade do ser humano tanto no aspecto individual quanto no social, como exemplo casos de racismo, discriminação, são casos típicos de danos ao bem-estar, aos prazeres da vida, ou seja, atrapalham a realização humana em sua potencialidade, por moldar o futuro e guiar uma nova pessoa a partir daquele evento danoso.
Portanto indo de encontro com o que acreditamos e defendemos em nossas teses em sede judicial. O dano existencial deve ser uma figura autônoma, separado assim do dano moral, com suas particularidades, meios de produção de prova e teses.
Bibliografia:
BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional do racismo. In: FIGUEIREDO, Marcelo; PONTES FILHO, Valmir (Org.) Estudos de direito público em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 158-159
LOPEZ, Teresa Ancona. Dano existencial. Revista de Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v. 57, jan.-mar. 2014, p. 301.
KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. Trad. Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro, s.d.
COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos direitos humanos. In: Cultura dos direitos humanos[S.l: s.n.], 1998.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.26.
NETO, Amaro Alves de Almeida. Dano Existencial – A Tutela da Dignidade da Pessoa Humana, in Revista de Direito Privado, editora Revista dos Tribunais, vol. 24, 2006; Alimentos e Culpa, www.apmp.com.br.
MELO, José Mário Delaiti de. O dano moral e o princípio da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/34232/o-dano-moral-e-o-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana.
Artigo – dano existencial – a tutela da dignidade da pessoa humana, pg 32 – MACCARONE, Matteo. Op. cit. p. 77-78.
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